Relato
Quando o Jefferson me falou que iria fazer o trecho de Porto
Velho do Cunha x Itaocara, remando, logo me convidei, sem dar tempo dele contar
alguma história triste dizendo que iria sozinho ou que já tinha um grupo
fechado... Bom, depois fui ver se realmente dava para eu ir. Mas se não desse,
daria um jeito, era uma oportunidade única. Como moro muito longe de Itaocara e
de não conhecer bem o local, ficaria bem difícil ir sozinho. Resolvi ir de
ônibus. Reservamos as passagens para o final do dia, pois a viagem seria
véspera de feriado e a procura naquele horário é bem grande.
Depois da logística organizada, foi hora de estudar o
percurso. Pelo relato que ele publicou há um tempo, a remada totalizaria cerca
de 60 km, com trechos longos de águas calmas e algumas corredeiras. Essa seria
uma distância na qual eu ainda não havia remado, mas avaliei que rio abaixo,
seria mais tranquilo. Engano meu, mas essa parte da história vai ficar para
daqui a pouco. Preparei o equipamento que eu tinha e vi o que precisaria, sendo
providenciado lá no clube de canoagem. A semana passou rápida e o grande dia
havia chegado.
Saí direto do centro do Rio para a rodoviária de Niterói.
Foi meio correria, mas chegamos bem à rodoviária, fazendo uma viagem tranquila
até Itaocara. Estava frio, o termômetro marcava 10°C. Até os cachorros estavam
escondidos. Já eram quase 2 da manhã e daqui a pouco já tínhamos que estar
prontos para a saída. Fizemos um lanche e deixei tudo pronto, assim poderia
tirar alguns minutos a mais de sono.
Levantamos às 5h e fomos ao clube de canoagem pegar parte do
equipamento para eu usar. De lá, seguimos para a casa do Markley, onde os
caiaques já estavam arrumados na carretinha. Demos uma parada rápida numa
padaria para encontrar o Wendel e tomar um café. Estava tão frio quanto à noite
anterior, mas como estava me movimentando mais, nem senti tanto. A noite estava
bem aberta, sinal de que teríamos um dia bem agradável. Pegamos a estrada por
volta das 6h e chegamos a Porto Velho do Cunha por volta das 7h 30min, tudo
dentro do programado. De Itaocara até lá, são cerca de 95 km.
Já na entrada do caminho que leva ao rio Paraíba do Sul,
tiramos os caiaques e os alinhamos numa entrada que seguia até o rio. Naquele
ponto, dava para perceber onde o nível da água havia atingido no último período
chuvoso, algo bem assustador. Pegamos todos os equipamentos e fomos ao ponto de
saída, ainda fazendo uma pequena caminhada. Ali, nos arrumamos. Tinha uma forte
serração, o que fazia parecer que a água estava em ebulição, dando
um aspecto bem diferente àquela fantástica paisagem. O rio corria
lentamente. Do Outro lado da margem uma mata bem densa, dava um toque especial
ao local.
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Acesso ao rio Paraíba do Sul
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Com tudo pronto, foi hora de entrar na água. Na primeira
remada senti o caiaque deslizando calmamente sobre as águas, uma sensação
fantástica. A partir daquele momento eu ele seríamos um só até ao final da
jornada. Estava usando um remo de fibra de carbono, muito diferente do que estou
acostumado a usar. Aos poucos, fui acostumando com o novo ritmo. Nesse trecho
inicial, as florestas das margens estão bem protegidas. A remada cadenciada
ajudou a espantar o frio. A serração foi se dissipando e já era possível ver o
contorno do sol. Em pouco tempo teríamos céu aberto.
Logo à frente, a floresta que já era densa, ficou mais
fechada ainda. Passamos pelo ponto onde o Rio Angu deságua no rio Paraíba, um
belo local. Depois de bastante tempo remando o Jefferson percebeu que havia
deixado o celular dele em cima de um barco que estava no local de onde
partimos. Tentamos ligar, mas lá não tinha sinal. Encontramos alguns pescadores
que estavam acampados na margem do rio e tentamos contato novamente, mas nada.
Seguimos rio a baixo. Passamos por algumas pequenas e fáceis
corredeiras. O sol apareceu. A cerração dissipou totalmente, mostrando um céu
azul e sem nuvens. O astral estava ótimo, seguia sempre um pouco mais atrás,
assim tinha certeza de onde seria o melhor local para passar. Por volta
das 10h, chegamos a uma parte do rio onde formava um extenso degrau. O Markley seguiu
na frente e o Jefferson parou para orientar a descida. Nesse ponto, algumas
pedras afloravam, mas a descida era suave.
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Neblina baixa no início da remada
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Mais alguns minutos remando e estávamos no Bar da Manuela.
Já havíamos remado cerca de 20 km e ali, marcava 1/3 do caminho. Um ótimo ponto
de apoio. Ali, fizemos uma rápida parada, continuando a remada logo em seguida.
Passamos por São Sebastião do Paraíba, quarto distrito de Cantagalo. Já
estávamos há cerca de 3h remando e podíamos contar facilmente a quantidade de
casas que tínhamos visto nas margens. Uma paz sem precedentes, que era
interrompida apenas pelo som das águas nas corredeiras que se seguiam. Apesar
de estarmos bem imersos numa natureza intocada, não havia visto nenhum animal,
somente o som dos pássaros. Talvez, pela rapidez com que passava pelos locais,
não prestava tanta atenção.
Continuando a remada e mesclando longos trechos de águas
calmas e pequenas corredeiras, chegamos ao Bar do Ernani. Mais um ponto de
apoio nessa aventura. O local estava fechado, mas ali fizemos nossa primeira
parada longa, algo em torno de 30 minutos. Aproveitamos para “almoçar” uns
saborosos sanduíches preparados pela Isadora, filha do Jefferson. Aproveitei
para fazer algumas imagens de drone, mas não havia verificado o cartão de
memória e as imagens foram salvas em baixa resolução. Passado o tempo de
parada, voltamos para a água, faltavam ainda um pouco mais da metade do
caminho.
Sentia-me bem, mas não sabia se estava remando mais lento
que os outros, de qualquer forma continuei no ritmo que dava, não queria
atrasar. Mas pelo que havia lido no relato feito pelo Jefferson, estávamos
dentro do programado. Passamos pelo Porto do Tuta, local de saída dos últimos
eventos de canoagem organizados pela ACAI. Esse trecho que ia até Porto
Marinho, era um que estivera em duas oportunidades, então já tinha certo
conhecimento. Logo à frente, estaria a corredeira mais forte de todo o
trecho: a corredeira do Urubu. O Urubu é uma corredeira classe III e
pode ser facilmente transponível pela margem.
Seguimos o fluxo do rio passando por mais uma corredeira e
mais a frente nem deu muito tempo de pensar. O Jefferson sinalizou pra remar.
Não tinha alternativa a não ser remar. Sabia que o Urubu estava a poucos
metros. O Markley e o Wendell já tinham ido e lá embaixo vi a ponta de um
caiaque para o alto, alguém havia capotado. Mas foi tão rápido que quando eu
vi, já estava em cima da corredeira. O Jefferson estava um pouco mais na frente.
Entrei nela e fui equilibrando com remadas fortes, a fim de manter a linha
correta. Num piscar de olhos, vi o Jefferson tombando também. Passei um pouco
mais para a direita dele. Nem acreditava que havia passado. O Jefferson foi até
a margem e fui até lá para descansar e ajudá-lo a tirar a água do barco.
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Jefferson na corredeira do Urubu
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Com tudo pronto novamente, voltamos para a remada. Já
havíamos passado da metade do caminho. Estávamos, aproximadamente, a cerca de 4
horas remando e era isso que mais ou menos faltava para terminar. Estava cansado,
mas remava tranquilo. Veio mais uma corredeira e na aproximação, quando fui
alinhar o caiaque, tombei. Ainda tentei ver se desvirava o caiaque, mas não deu
tempo. Desci segurando a borda até um ponto mais calmo do rio. O Jefferson veio
para dar um apoio. Acho que nadar é pior que remar. Fiquei mais cansado do que
quando tive que remar para descer o Urubu. Na margem do rio, tiramos a água do
caiaque e reiniciamos a descida. Confesso que fiquei desanimado, capotei
sozinho, num trecho muito mais fácil que o Urubu. Talvez tenha sido excesso de
confiança ou falta de atenção.
Mais uma corredeira me esperava e não tinha espaço para mais
erro. Concentrei e comecei a remada. Tentei cadenciar melhor e só ouvia o
Jefferson gritar: rema, rema, rema, não para! E assim desci mais uma, o que
elevou um pouco a moral, apesar do cansaço. Dali, passamos por Porto Marinho e
seguimos até a Cabana do Peixe Frito, onde fizemos a segunda parada longa do
dia. Fizemos mais um lanche. Estava bem cansado, mas tranquilo. Não tinha
dúvidas que conseguiria. Já estávamos com 42 km de remada. Faltava pouco!
Saímos numa água parada, trecho em que o rio contornava uma
ilha. Seguimos remando até encontrar mais uma corredeira. Entrei nela e já no
final, uma onda me jogou para o lado. Não deu mais uma vez, virei e segui
segurando o caiaque até a margem, onde pude tirar a água, com a ajuda do
Jefferson. O cansaço havia chegado. Estávamos com, aproximadamente, 45 km. A
partir daí, diminuí um pouco o ritmo e remava um pouco mais atrás. Passei por
mais uma corredeira, agora muito mais concentrado, pois não podia parar de
remar. Não queria capotar novamente. Ter que nadar e depois tirar a água do
caiaque cansava mais que a remada em si, além de abalar o psicológico.
Já estávamos com quase 50 km de remada. O sol estava forte,
eram 15h. Tentava procurar um trecho com sombra, mas não tinha. Restava apenas
jogar uma água na cabeça para refrescar. Nesse ponto já podia ver a Serra da
Bolívia bem à frente, ainda pequena, mas já era sinal de que estávamos próximo
do fim. O Jefferson já me perguntava se estava tranquilo com mais frequência,
talvez sentindo que sempre ficava um pouco mais para trás. Isso me manteve
motivado, não queria atrasar o grupo. As pequenas corredeiras se transformavam
em grandes desafios. Numa corredeira, vi o Wendell capotando. Não tinha jeito.
Ou superava ou estaria capotando e tendo remar até a margem. Comecei a remar. O
caiaque foi seguindo a ondulação e na onda mais alta, quase tombei. Por sorte
consegui manter o equilíbrio do barco e seguir remando até um remanso onde
ofegante, consegui descansar um pouco.
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Eu em uma corredeira
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Ouvi o Jefferson dizendo que dali em diante não tinha mais
nenhuma corredeira. Senti um alívio, mas foi só remar mais um pouco e comecei a
ouvir aquele chiado, mais uma estava chegando. Naquele momento, qualquer água
mexida virava corredeira. E foi preciso muita concentração para seguir remando.
Sabia que estava no fim e que tudo seria resolvido em pouco tempo. Mas alguns
trechos calmos e mexidos, até que me dei conta de que a Serra da Bolívia estava
ao meu lado e não mais a minha frente. Tinha certeza que estava chegando. De
longe avistei um trecho onde o rio se dividia e mais a frente um grande
bambuzal. Reconheci o local. Havia chegado. Faltavam poucos metros.
Mais algumas remadas, totalmente no automático e alinhamos
os barcos para poder registrar um momento mágico. Com sol se pondo atrás da
Serra da Bolívia, após remar 58,6 km em 8h 40min, chegávamos ao final da
jornada. Pra mim, um dia épico. Bons momentos carregamos na memória. Mas
momentos como esse, carregamos também no coração.
Após guardar os barcos, o Jefferson ainda foi tentar
recuperar o celular que havia deixado no ponto de saída. Não conseguiu no dia,
mas após fazer contato com um morador de Porto Velho do Cunha, conseguiu
recuperá-lo no dia seguinte. Ainda tirei uma soneca, só esperando a hora do
ônibus que me levaria de volta pra casa. Estava esgotado fisicamente, mas com a
mente leve. Um grande dia.
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Eu e o Jefferson |
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Notem a marca da água!!!!
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Caminho precário para chegar ao rio
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Iniciando a remada |